Um dia, em 1788, os estudantes da Escola de Medicina Hunterian, em
Londres, estavam abrindo um cadáver quando descobriram algo
surpreendente. A anatomia do morto era uma imagem espelhada da que seria
normal. Seu fígado ficava no lado esquerdo, em vez do direito. Seu
coração tinha crescido no lado direito, não no esquerdo.
O relatório do professor da escola, o médico escocês Matthew Baillie,
foi a primeira descrição detalhada dessa condição, que passou a ser
conhecida como "situs inversus" e parece ocorrer em cerca de uma em cada
20 mil pessoas.
Baillie afirmou que a condição poderia ajudar os médicos a compreender
como nossos corpos normalmente distinguem o lado direito do esquerdo.
As mutações que causam o "situs inversus" podem levar a vários
distúrbios graves, incluindo defeitos cardíacos congênitos. Decifrar os
efeitos de genes alterados poderia levar a diagnósticos e tratamentos
dessas condições.
"Compreender como você monta esse eixo tem muitas implicações para a
compreensão da doença cardíaca congênita", disse Rebecca Burdine,
bióloga molecular na Universidade Princeton, em Nova Jersey.
Dominic P. Norris, biólogo do desenvolvimento no Conselho de Pesquisa
Médica em Harwell, na Inglaterra, e outros cientistas estão começando a
resolver esse quebra-cabeça. Eles identificaram alguns dos passos pelos
quais os órgãos dos embriões se desenvolvem à direita ou à esquerda.
Nossos corpos começam simétricos, sendo o lado esquerdo um reflexo perfeito do direito.
A assimetria no corpo humano começa a aparecer depois de seis semanas de
gestação. O coração é o primeiro órgão a se posicionar. Começando como
um simples tubo, ele se inclina para a esquerda e mais tarde gera
diversas câmaras e vasos de cada lado.
Mas essas mudanças visíveis surgem muito depois de o embrião ter
desenvolvido diferenças à esquerda e à direita. Experiências revelaram
que o embrião inicial produz proteínas diferentes de cada lado, embora
ainda pareça simétrico.
Os biólogos identificaram o ponto exato em que essa simetria começa a se
romper: um pequeno caroço chamado nódulo, na linha mediana do embrião. O
interior do nódulo é forrado por centenas de pequenos pelos, chamados
cílios, que giram em um ritmo de dez vezes por segundo.
"É como um liquidificador", disse o doutor Norris. "Não para de girar."
Inclinados, os cílios empurram o fluido que envolve o embrião em uma
direção, da direita para a esquerda. Quando os cientistas inverteram
esse fluxo em embriões de ratos, aconteceu a formação de órgãos
invertidos.
Quando o fluido começa a se movimentar, leva apenas três ou quatro horas para que os lados esquerdo e direito sejam definidos.
A borda do nódulo é cercada de cílios que reagem ao fluxo sem girar.
"Não sabemos os detalhes e a verdadeira mecânica do que acontece nessas
células."
Os cílios podem então liberar átomos de cálcio que se espalham para as
células circundantes. Estas reagem emitindo uma proteína chamada nodal,
que se espalha pelo lado esquerdo do embrião, deixando-o inundado de
nodal.
"A nodal parece dizer diretamente às células do lado esquerdo para que
se movam mais depressa que as da direita", disse a doutora Burdine.
As células rápidas do lado esquerdo puxam todo o coração no sentido
horário. A partir desse giro inicial, o coração desenvolve seus lados
esquerdo e direito diferenciados.
Alguns estudos sugerem que esses primeiros sinais também influenciam o desenvolvimento cerebral.
Os cientistas sabem, há muito tempo, que os dois lados do cérebro humano
têm algumas diferenças importantes. O hemisfério direito, por exemplo,
tem uma grande função na compreensão da vida mental das outras pessoas,
já o hemisfério esquerdo é importante para focalizar a atenção.
Enquanto observam esses sinais biológicos, os cientistas também estudam distúrbios que podem estar ligados à sua desordem.
"Situs inversus", a inversão total dos órgãos que Baillie descreveu em
1788, talvez seja o distúrbio mais drástico, mas também é um dos menos
prejudiciais.
A inversão é relativamente segura porque todos os órgãos se alinham. O
verdadeiro perigo está nas inversões incompletas -"quando fica uma
confusão, e as coisas não se ligam adequadamente", disse o doutor
Norris.
Os casos mais preocupantes são os que afetam o coração. "Se o coração
estiver no lugar errado, e todo o resto estiver certo, é quase sempre
fatal", disse a doutora Burdine.
Ela espera que a pesquisa sobre os distúrbios de esquerda e direita leve
a testes genéticos capazes de prever o risco de defeitos cardíacos
ocultos. Ela até vê uma aplicação nas tentativas de reconstruir corações
danificados com células-tronco.
"Vai ser mais que apenas fazer as células certas", disse ela,
acrescentando que elas teriam de ser colocadas na estrutura
tridimensional adequada e receber os sinais corretos sobre aonde ir.
"E um desses sinais é o sinal de direita/esquerda", disse.
referencia
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