O que vc pode achar aqui..

Neste Blog você encontra um pouco de cultura, um pouco de Matemática, Física, Notícias, Alertas, Lazer, Fotos.

Alguns aspectos do desenvolvimento da geometria


O teorema elegantissimum de Gauss

 


Enunciado:

Para todo triângulo geodésico ideal T (ver figura anterior)  de uma superfície regular e orientável S, vale a igualdade a seguir:


onde K é a curvatura  Gaussian da superfície S, e os ângulos theta1,2,3 são os angulos dos vértices do triángulo geodésico T da figura anterior.





casos particulares:






 


I )  A soma de ângulos internos de um triângulo geodésico num plano é igual a Pi.

II)  A soma dos ângulos internos de um triângulo geodésico numa superficie esférica S^2 (unitaria, raio R=1), cujos lados são grandes arcos de circunferencia (curvas geodésicas),
é maior que Pi; sendo a área do triângulo geodésico igual a diferença da soma dos ângulos internos do
triângulo e Pi.


PS: Para entender o significado e importancia do teorema anterior na matemática, vou apresentar um artigo completo  que achei interessante e  gostaria de divulgar.


                                       Alguns aspectos do desenvolvimento da geometria

por:  Claudio Gorodski


Este texto pretende apresentar em uma linguagem não-técnica algumas linhas históricas importantes do desenvolvimento da geometria. Após um brevíssimo prelúdio sobre as etapas iniciais do assunto, mergulhamos no mundo da geometria diferencial, que é a área de interesse do autor. Mesmo aí, devido às limitações de espaço, a exposição é de nível notadamente superficial. Estamos conscientes da inerente tecnicalidade da matemática, característica que dificulta a compreensão de suas motivações pelo leigo. Assim, com esse texto esperamos pelo menos causar alguma impressão positiva no leitor no que diz respeito à magnitude e ao alcance das realizações da geometria. Acrescentamos que importantes seções da geometria que são extremamente ativas hoje em dia foram completamente omitidas, como a geometria simplética, área relativamente nova mas que têm raízes mais antigas na mecânica clássica, e a geometria algébrica, possivelmente mais antiga do que a geometria diferencial.

                                                                *        *        *
                                                                   
Apesar do historiador grego Heródoto escrever que a geometria nasceu no antigo Egito, os registros mais antigos de atividades humanas no campo da geometria de que dispomos remontam à época dos babilônios há talvez cerca de cinco mil anos e foram aparentemente motivadas por problemas práticos de agrimensura[1]. Formas primitivas de geometria são encontradas também entre os hindus, chineses e japoneses. Entre todos esses povos nota-se que as verdades geométricas são afirmadas na formas de proposições particulares cujas justificativas são completamente negligenciadas, de modo que a geometria apresenta-se como um conjunto de regras empíricas. Essa maneira de se ver a geometria transforma-se profundamente com os gregos. Tales de Mileto, que viveu por volta do ano 600 antes da era comum, é normalmente considerado o pai da geometria grega. Pouca certeza se tem sobre sua vida e obra. A proposição conhecida como o teorema de Tales - que um ângulo inscrito num semicírculo é um ângulo reto - já era conhecida pelos sumérios cerca de dois mil anos antes. De qualquer forma, parece seguro dizer que Tales, juntamente com a escola pitagórica grega, fez contribuições importantes na direção de estabelecer o método dedutivo-formal em matemática, o que foi finalmente concretizado com o aparecimento de Os Elementos (ca. 300 AEC), obra máxima de Euclides e provavelmente um dos tratados mais importantes já escrito em toda a história ocidental. Os treze volumes de Os Elementos não apenas incluiram toda a matemática da sua época, mas forneceram um modelo para o desenvolvimento rigoroso das idéias matemáticas que é utilizado até os dias de hoje: inicialmente definições e axiomas são apresentados, então proposições são provadas a partir dessas premissas e de outras proposições através de dedução lógica.


                                                                *        *        *


Um capítulo crucial na história da geometria, e que de fato faz a ligação entre a geometria grega e a geometria diferencial moderna, é a história do Postulado V de Euclides, também conhecido como postulado das paralelas: “É verdade que, se uma reta corta duas outras retas formando ângulos internos no mesmo lado cuja soma é menor do que dois ângulos retos, então as duas retas se continuadas indefinidamente encontrar-se-ão no lado em que estão os ângulos cuja soma é menor do que dois ângulos retos.” Uma formulação equivalente e mais conhecida deste postulado, atribuída a Playfair, é: “Por um ponto fora de uma reta pode-se traçar uma única reta paralela à reta dada.” Para seus primeiros leitores, Os Elementos forneciam uma descrição idealizada do espaço físico, mas a frase “se continuadas indefinidamente” contida no Postulado V desafiava uma intuição baseada em construções com régua e compasso. Devido à complexidade relativa de formulação e o insuficiente apelo intuitivo, o Postulado V fez com que através dos séculos diversos matemáticos tentassem deduzí-lo dos demais axiomas e portanto prová-lo com um teorema. O resultado desse esforço continuado, que durou cerca de dois mil anos, produziu uma grande número de afirmações equivalentes (um exemplo é o supracitado axioma de Playfair), mas o Postulado V resistiu a todas as tentativas de demonstração. Entre o tempo de Euclides a 1829, o ano da publicação em russo de Sobre os Princípios da Geometria do matemático russo Nikolai Lobachevski (1793-1856), muitas das críticas de Os Elementos estavam relacionadas com o desejo de “purificar” o trabalho de Euclides de suas imperfeições. Tão forte era a convicção de que o Postulado V dependia dos Postulados I a IV, que esses críticos não perceberam no seu trabalho a base para uma nova geometria. Lobachevski entrou para a história como o primeiro matemático a publicar um trabalho desenvolvendo uma geometria construída sobre uma hipótese em conflito direto com o Postulado V de Euclides: “Por um ponto fora de uma reta pode-se traçar mais de uma reta paralela à reta dada”. Seu trabalho mostrou que a geometria Euclideana não era a verdade absoluta que supunha ser e desferiu um golpe devastador na filosofia Kantiana, representando um ato de audácia intelectual comparável ao que havia sido em outra época o sistema heliocêntrico de Copérnico.
Apesar de Lobachevski ter sido o primeiro a publicar um trabalho sobre a geometria não-Euclideana, existe documentação comprovando que Carl Friedrich Gauss (1777-1855), a então figura dominante no mundo matemático, já havia começado a desenvolver as idéias da nova geometria na década de 1820, como ele disse, “para si próprio”, e não publicou ou divulgou seu trabalho, talvez por medo de incompreensão e perseguição. De fato, a geometria de Lobachevski inicialmente não foi bem recebida, como é comumente o caso com descobertas revolucionárias que afetam convicções firmemente estabelecidas, e apenas lentamente foi se tornando conhecida. O húngaro Janos Bolyai (1802-1860) chegou independentemente à mesma descoberta que Lobachevski e publicou seu trabalho Ciência Absoluta do Espaço como apêndice de um livro de seu pai, Wolfgang, que era amigo de Gauss, em 1831. A reação de Gauss tanto ao trabalho de Bolyai como de Lobachevski foi o mesmo: aprovação sincera, mas sem apoio impresso. A geometria não-Euclideana continuou por várias décadas a ser um aspecto da matemática um tanto à margem antes de ser completamente integrada. Mas para entender esse processo, é interessante interrompermos esse fluxo de idéias e retornarmos um pouco no tempo a fim de discutirmos um outro aspecto importante da geometria que estava emergindo.

                                                               *        *        *
                                                                       

A história da geometria diferencial começa com o estudo de curvas. Noções como retas tangentes a curvas já são encontradas entre os gregos Euclides, Arquimedes e Apolônio. No século XVII, os franceses Pierre de Fermat (1601-1665) e René Descartes (1596-1650) criam o método das coordenadas ou a “geometria analítica”[2] enquanto que o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) e o inglês Isaac Newton (1643-1727) descobrem os algoritmos do cálculo infinitesimal, os quais permitirão o estudo de curvas e superfícies através de suas propriedades diferenciais. A curvatura de uma curva plana em um ponto da curva é uma medida numérica de quanto a curva se afasta de ser uma reta numa vizinhança daquele ponto: é a taxa de variação naquele ponto da direção tangente à curva em relação ao comprimento de arco[3]. Os conceitos de curvatura de uma curva plana e de círculo osculador já eram conhecidos por Newton e Leibniz, mas o precursor do assunto talvez seja o holandês Christian Huygens (1629-1695), que ainda não conhecia o cálculo, mas que em 1673 publicou um trabalho sobre curvas planas introduzindo os conceitos de involuta e evoluta de uma curva o qual foi curiosamente motivado pelo seu interêsse em pêndulos e relógios. Durante o século XVIII e até o início do século XIX, desenvolvem-se os fundamentos da teoria de curvas e superfícies mergulhadas nos espaço tridimensional. Em 1731, Alexis Clairaut (1713-1765) estuda curvas no espaço tridimensional mas se limita à propriedades de primeira ordem (que envolvem apenas as derivadas primeiras, como retas tangentes). Em 1775, Gaspard Monge (1746-1818) vai mais longe e discute os conceitos de curvatura e torção de uma curva espacial.[4] Uma transição natural da teoria de curvas para a teoria de superfícies se encontra no problema geodésico, i. e. o problema de se encontrar o caminho mais curto entre dois pontos de uma superfície. Nunca ocorreu aos matemáticos do século XVIII a necessidade de mostrar a existência de um tal caminho, sendo que a sua preocupação era apenas a de determinar a caracterização geométrica da curva que teria tal propriedade. O problema atraiu a atenção dos irmãos Bernoulli[5], Jacob (1654-1705) e Johannes (1667-1748), que, entre outros, forneceram ambos soluções corretas, sendo a de Johannes mais clara, enquanto que a de Jacob - embora mais confusa e laboriosa - era mais geral. O pródigo Leonhard Euler (1707-1783), cuja torrente de descobertas dominou a matemática durante a maior parte do século XVIII, foi aluno de Johannes Bernoulli. Sua maior contribuição à geometria diferencial talvez tenha sido o estudo da curvatura das seções planas de uma superfície[6]. Em 1772, Euler escreve sobre o problema de se determinar quando uma superfície pode ser desenvolvida isometricamente (isto é, sem distorcê-la) sobre um plano, como por exemplo é o caso do cilindro e do cone. Ele descobre que a condição necessária para que isso ocorra é que a superfície seja regrada (ou seja, folheada por retas). Uma das mais significativas obervações de Euler acerca da teoria de superfícies encontra-se num fragmento sem importância: “Et quia per naturam superficierum quaelibet coordinata debet esse functio binarium variabilium”. Esse é o reconhecimento do fato das coordenadas (x,y,z) dos pontos de uma superfície serem funções de duas variáveis independentes. É curioso notar que nem ele nem seus contemporâneos seguiram essa idéia e estudaram superfícies através da representação das coordenadas x, y, z em termos de funções de duas variáveis. Foi necessário o gênio de Gauss para dar esse passo aparentemente óbvio. Citamos ainda os nomes de Charles Dupin (1784-1873), aluno de Monge e continuador de sua obra, e de Augustin Louis Cauchy (1789-1857). Em seu Leçons sur l'application du calcul infinitésimal à la géométrie que foi publicado em 1826, Cauchy principalmente introduz novos métodos ao assunto e sistematiza e esclarece diversos cálculos feitos por seus predecessores. Em particular, ele precisa e refina o trabalho de Monge sobre a curvatura k e a torção t de uma curva espacial, e chega às fórmulas, hoje conhecidas como de Frenet-Serret[7], que expressam o comportamento local da curva em função de k e t em relação a um sistema de coordenadas móvel.[8] Os teoremas de existência e unicidade de soluções de equações diferenciais devidos a Cauchy permitem mostrar que as funções k e t determinam completamente a curva a menos de um movimento rígido do espaço. O trabalho de Cauchy marca o final de um período definido na história da geometria diferencial. Suas técnicas eram belas, mas tiveram de ceder espaço aos métodos do gigante que viria a dar o tom final ao assunto e obter os teoremas mais importantes até então inimagináveis.

                                                               *        *        *

Por volta de 1820, Gauss foi chamado pelo governo de Hanover para supervisionar um levantamento topográfico do reino, e vários aspectos dessa tarefa, incluindo exaustivo trabalho de campo e tediosas triangulações, ocuparam-no por vários anos, mas propiciaram o estímulo que o conduziu às idéias de sua obra Disquisitiones generales circa superficies curvas (1827). Já comentamos que Euler havia percebido que as coordenadas x, y, z de um ponto de uma superfície podem ser consideradas como funções de duas variáveis independentes u, v, mas é Gauss quem utiliza tal representação paramétrica sistematicamente. As variáveis u e v são chamadas de “coordenadas curvilíneas” sobre a superfície. Gauss introduz a forma diferencial quadrática ds2, hoje conhecida como primeira forma fundamental, que essencialmente exprime as distâncias sobre a superfície, e escreve ds2 em termos de três funções E, F e G de u e v o que lhe permite escrever equações para as curvas geodésicas[9]. Inspirado por seus trabalhos em astronomia e geodesia, ele introduz a noção de “representação esférica” de uma superfície, hoje conhecida como aplicação de Gauss[10]. O estudo dessa representação o leva a definir a “medida de curvatura” da superfície em P, hoje conhecida como curvatura Gaussiana[11]. A fim de calcular a curvatura Gaussiana através das coordenadas curvilíneas, ele introduziu uma outra forma diferencial quadrática, derivada da aplicação de Gauss e que hoje é conhecida como segunda forma fundamental[12]. Um de seus maiores resultados é o famoso theorema egregium, que afirma que a curvatura Gaussiana, apesar de ter sido definida através da aplicação de Gauss e portanto parecer depender de como a superfície está mergulhada no espaço, depende somente da primeira forma fundamental e é portanto invariante se transformarmos a superfície sobre outra superfície (ou a deformarmos) isometricamente (isto é, sem alterar distâncias sobre ela). Dessa maneira, o cilindro e o cone têm curvatura Gaussiana nula, assim como o plano. Mas a esfera têm curvatura Gaussiana positiva, sendo esta inversamente proporcional ao quadrado do raio da esfera. O ponto crucial envolvido no theorema egregium e em outras realizações de Gauss é o conceito de geometria intrínseca. Ele mostrou como estudar a geometria de uma superfície operando exclusivamente na própria superfície, sem se preocupar com o espaço à sua volta onde ela se encontra. Para tornar isso mais concreto, imaginemos um ser inteligente e bidimensional que habita uma superfície e não toma conhecimento de uma terceira dimensão ou de nada que não esteja na superfície. Se essa criatura for capaz de se mover e medir distâncias ao longo da superfície, então ela também é capaz de medir a curvatura Gaussiana em qualquer ponto e de criar uma rica geometria na superfície - essa geometria será Euclidiana (plana) se e somente se a curvatura Gaussiana for sempre nula.
É um fato básico de geometria Euclideana que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180 graus ou p radianos. Quando consideramos um triângulo geodésico numa superfície (isto é, um triângulo cujos lados são geodésicas), a soma de seus ângulos internos (em radianos) e p não precisam coincidir, pode haver uma diferença. Outro resultado fundamental de Gauss é que essa diferença é igual à área da representação esférica do triângulo (ou, o que dá no mesmo, a integral da curvatura Gaussiana estendida sobre o triângulo). Este resultado de Gauss estava fortemente ligado ao seu interesse pelas geometrias não-Euclideanas. Além disso, como será discutido mais adiante, esse teorema foi sucessivamente generalizado por gerações posteriores de matemáticos e constitui um resultado seminal no desenvolvimento da linha de pesquisa global em geometria diferencial. Mas a conceituação dessa linha de pesquisa levaria ainda cerca de cem anos até ser mais claramente formulada.

                                                               *        *        *

Alguns destacados continuadores do trabalho de Gauss são Pierre Bonnet (1819-1892), Carl Jacobi[13] (1804-1851) e Ferdinand Minding (1806-1885). Em 1848, Bonnet generalizou o teorema de Gauss relativo à área de um triângulo geodésico. Uma outra contribuição importante de Bonnet à teoria de superfícies foi a de estabelecer o que nós chamamos hoje em dia de teorema fundamental de existência de superfícies. Gaspare Mainardi (1800-1879) em 1856 e Delfino Codazzi (1824-1873) em 1867 haviam exprimido as condições de compatibilidade entre os coeficientes das duas formas fundamentais e suas derivadas. Bonnet demonstra em 1867 que essas condições, hoje conhecidas como equações de Gauss-Codazzi-Mainardi, são suficientes para que exista uma superfície com essas formas fundamentais dadas.
Um segmento suficientemente curto de uma geodésica é o caminho mais curto entre os seus extremos, como por exemplo um segmento do meridiano de Greenwich terrestre que una a cidade de Greenwich a algum ponto da África. No entanto, se prolongarmos esse segmento nos dois sentidos, na direção norte para além do pólo norte e na direção sul para além do pólo sul, o caminho mais curto entre os seus extremos será agora um trecho de um outro meridiano (que corta o oceano Pacífico). Por volta de 1840, Jacobi se ocupou da questão de saber quando um segmento de geodésica que é prolongado cessa de ser o caminho mais curto entre os seus extremos. Este é um problema de geometria diferencial global. Jacobi dá uma resposta correta em termos de uma equação diferencial de segunda ordem (hoje conhecida como equação de Jacobi), mas sem demonstração; esta é fornecida por Bonnet.
Em 1839, Minding mostrou que duas superfícies com a mesma curvatura Gaussiana constante podem ser transformadas isometricamente uma sobre a outra. Em outro trabalho, no ano seguinte, ele estabeleceu as relações trigonométricas de triângulos geodésicos em superfícies de curvatura constante negativa. Apesar deste artigo ter sido publicado na mesma revista em que apareceu a tradução para o francês do artigo de Lobachevski Geometria imaginária sobre geometria não-Euclideana, nenhum dos dois notou que as fórmulas trigonométricas no plano hiperbólico de Lobachevski coincidiam com as fórmulas trigonométricas nas superfícies de curvatura constante negativa. Quem percebeu essa coincidência foi Eugenio Beltrami (1835-1900), que considerou o assunto em Saggio di interpretazione della geometria non-Euclidea em 1868 e assim construiu o primeiro modelo concreto do plano de Lobachevski demonstrando a consistência da geometria não-Euclideana.

                                                              *        *        *

No décimo dia do mês de junho de 1854 Bernhard Riemann (1826-1860) proferiu uma conferência para os docentes da faculdade de filosofia da Universidade de Göttingen com o intuito de satisfazer os requerimentos para a promoção a Privatdozent. Como era de costume, Riemann ofereceu três possíveis tópicos para a sua conferência. Os dois primeiros lidavam com partes de sua Habilitationsschrift (uma segunda tese também requerida para a promoção), e o terceiro com os fundamentos da geometria. Contrariamente à prática usual, Gauss, que era o chefe do departamento, escolheu o terceiro tópico. Riemann afastou-se de seus outros interesses no momento e durante os dois meses seguintes preparou a sua conferência. O resultado foi talvez a mais importante conferência científica jamais proferida, Über die Hypotheses, welche der Geometrie zu Grunde liegen. Conta-se que mesmo Gauss ficou entusiasmado. Aqui Riemann deslanchou o próximo estágio no desenvolvimento da geometria diferencial. O texto da conferência não foi publicado durante a sua vida, mas a publicação póstuma em 1868 repercutiu quase que imediatamente entre a comunidade de matemáticos trabalhando em geometria diferencial. O artigo de Beltrami supracitado não concluía o seu estudo da geometria não-Euclideana. Ele deixou em aberto o problema de construir o espaço hiperbólico de Lobachevski em três dimensões, e, de fato, acreditava ser impossível construir tal espaço. No entanto, em 1869, com o aparecimento do artigo de Riemann, Beltrami publicou uma análise de espaços de curvatura constante em várias dimensões baseda nas idéias de Riemann incluindo uma versão detalhada do espaço hiperbólico tridimensional. Mais tarde, Felix Klein (1849-1925) e o grande matemático e físico francês Henri Poincaré (1854-1912) propuseram outros modelos para a geometria de Lobachevski.
Riemann tentou redigir o texto da conferência de maneira o menos técnica possível para atingir mesmo os docentes com pouca experiência matemática. Mesmo assim, haviam detalhes suficientes para direcionar a pesquisa de diversas gerações subsequentes de geômetras. Ele introduziu o conceito de variedade n-dimensional de pontos (x1, x2, ... , xn) que generaliza a idéia de superfície bidimensional tanto no sentido de considerar um número maior de dimensões quanto no sentido de descartar a necessidade do objeto estar mergulhado em algum espaço circundante. Em seguida introduziu uma forma diferencial quadrática (hoje chamada de métrica Riemanniana) na variedade que generaliza a primeira forma fundamental das superfícies e define as distâncias sobre ela. Esse é um dos pontos essenciais de sua visão: a separação entre os conceitos do conjunto de pontos (a variedade n-dimensional) e as possíveis métricas que podem ser definidas sobre ele. Dessa maneira, Riemann aprofundou brutalmente o conceito de geometria intrínseca da teoria de superfícies de Gauss. Finalmente, ele ainda introduziu a curvatura Riemanniana (que generaliza a curvatura Gaussiana) e discutiu o caso de variedades Riemannianas de curvatura constante. O trabalho de Riemann não apenas unificou a geometria Euclideana e a não-Euclideana, mas representou uma vasta generalização dessas geometrias.
As investigações de Riemann foram continuadas por Elwin Christoffel (1829-1900) que publicou um trabalho em 1869 onde colocou a questão de se saber em que condições duas métricas Riemannianas determinam a mesma geometria. Assim como a intenção de Riemann era de generalizar a teoria de superfícies de Gauss, a intenção de Christoffel era de generalizar o problema de superposição de superfícies. Para resolver esse problema, ele introduziu os hoje chamados símbolos de Christoffel e o tensor de curvatura de Riemann-Christoffel, e derivou como condição necessária a coincidência das tensores de Riemann-Christoffel calculados para as duas métricas Riemannianas. Os cálculos de Christoffel formam a base dos métodos invariantes em geometria Riemanniana que caracterizariam o próximo estágio de desenvolvimento.

                                                              *        *        *

No final do século XIX a teoria de superfícies já estava bem estabelecida. Entre 1887 e 1896 apareceram os quatro volumes do clássico Leçons sur la théorie générale des surfaces de Gaston Darboux. Por outro lado, o trabalho de Riemann havia despertado considerável interesse em variedades Riemannianas de dimensão arbitrária e curvatura constante arbitrária, e o problema de se classificar tais variedades, proposto por Killing em seu livro de 1891, ficou conhecido como problema de Clifford-Klein pelas contribuições desses dois matemáticos ao assunto. Em um desenvolvimento paralelo, o Erlanger Programm de Klein de 1872 sintetizava a geometria como o estudo das propriedades do espaço que são invariantes sob um grupo de transformações dado. O norueguês Sophus Lie (1842-1899), inspirado por conversações com Klein e motivado pelo seu desejo de criar uma teoria de solubilidade de equações diferenciais análoga à teoria de solubilidade de equações algébricas de Galois, inventou a teoria geral dos grupos contínuos de transformações (hoje conhecidos como grupos de Lie) em 1885-6.
As pesquisas de Riemann também influenciaram questões da filosofia do espaço físico. William Clifford (1845-1879) formulou um programa de geometrização a física onde ele admitia a possibilidade de que pequenas variações de curvatura, dependentes do tempo, podem ocorrer de ponto para ponto no nosso espaço e causar efeitos que nós atribuímos a causas físicas. Também a esse respeito, Poincaré escreveu que espaço e tempo assim como todas as leis da natureza são meros símbolos criados pelo homem para a sua conveniência, e que as hipóteses fundamentais da geometria não são fatos baseados nem em lógica nem em experiência, mas que a observação de certos fenômenos físicos nos leva a acolher certas hipóteses em detrimento de outras. Albert Einstein (1879-1955), ao contrário de Poincaré, parte da realidade física e da possibilidade de escolher arbitrariamente axiomas geométricos que, conjuntamente com as leis físicas, devem confrontar a experiência. Assim ele acredita que a questão de saber qual geometria concebível corresponde à geometria do mundo real deve ser decidida experimentalmente.
A apresentação da teoria geral da relatividade foi iniciada por Einstein juntamente com o matemático alemão Marcel Grossmann (1878-1936) em Entwurf einer verallgemeinerten Relativitätstheorie und Theorie der Gravitation (1913) e concluída com Grundlagen der allgemeinen Relativitätstheorie (1916). O mais importante elemento dessa teoria é a interpretação geométrica da gravidade: a densidade da matéria numa certa região, e portanto a intensidade do campo gravitacional é proporcional à curvatura do espaço-tempo na métrica pseudo-Riemanniana[14]. Essa teoria deu grande ímpeto ao avanço da geometria diferencial. Já no artigo de 1913 Einstein e Grossmann usaram o cálculo tensorial criado em 1884 pelo geômetra italiano Gregorio Ricci-Curbastro (1853-1925) e subsequentemente desenvolvido com o seu aluno Tullio Levi-Civita (1873-1941) em 1901, o qual era uma reformulação das idéias de Christoffel que permitia considerar objetos do cálculo diferencial em variedades independentemente da escolha de coordenadas. Esse interesse ampliado em geometria Riemanniana advindo da teoria da relatividade levou mais tarde Levi-Civita a descobrir o importante conceito de transporte paralelo de vetores (1917). Por sua vez, as tentativas de se unificar as teorias do campo gravitacional e eletromagnético também beneficiaram a geometria e incentivaram o desenvolvimento do conceito de conexões afins em espaços fibrados através dos sucessivos esforços de Weyl (1918), Schouten (1922), Cartan (1923) e Ehresmann (1950).

                                                              *        *        *

As variedades introduzidas por Riemann e os grupos introduzidos por Lie, assim como outros espaços considerados pelos geômetras até o início do século XX tinham em geral um carácter local - estavam definidos apenas no domínio de uma sistema de coordenadas. Mas mesmo sem contar com definições precisas, em 1857 Riemann havia introduzido idéias globais com suas superfícies de Riemann em teoria de funções analíticas e mais tarde, a partir de 1895, Poincaré iniciou o estudo da topologia global de variedades tridimensionais. O crescente interesse dos matemáticos pela nova área da topologia[15] repercutiu entre os geômetras. Em 1912, no livro de Weyl sobre superfícies de Riemann, apareceu uma definição do conceito global de variedade diferenciável mostrando como “colar” os diversos sistemas de coordenadas de maneira compatível a fim de formar um “atlas”. Em 1924 o mesmo Weyl reconheceu a importância dos métodos topológicos na teoria dos grupos de Lie e assim inaugurou o ponto de vista global nessa teoria. O conceito de variedade diferenciável global amadureceu até atingir o seu formato definitivo com os trabalhos de O. Veblen e J. H. C. Whitehead (1933) e H. Whitney (1936).
Como consequência da evolução do conceito de variedade diferenciável, antigos problemas em geometria foram revistos sob o novo ponto de vista global e novos problemas surgiram. S. Cohn-Vossen, W. Blaschke, S. S. Chern e outros estudaram as propriedades globais relacionando os invariantes Riemannianos com a topologia das variedades. H. Poincaré, G. Birkhoff, M. Morse, J. Hadamard e E. Hopf estudaram várias propriedades de geodésicas de diversos pontos de vistas diferentes. H. Hopf estudou as propriedades globais dos espaços de curvatura constante e É. Cartan definiu e investigou exaustivamente os espaços simétricos, uma classe notável de variedades Riemannianas. Através desse esforço monumental, a geometria Riemanniana foi ligada a diversas áreas de matemática, e foi reconhecido que a relação entre as propriedades locais determinadas pelas métricas Riemannianas (e. g. curvatura) e as propriedades globais relacionadas com a estrutura global da variedade (e. g. invariantes topológicos) são importantes objetos de investigação (e. g. o teorema de Gauss-Bonnet generalizado). Através da noção de completude introduzida por H. Hopf e W. Rinow (1931), as noções globais foram firmemente estabelecidas.

                                                             *        *        *

A geometria diferencial que foi desenvolvida durante o período que vai da época de Riemann até a Segunda Guerra Mundial pode ser chamada de “geometria Riemanniana clássica”. Ela corresponde mais ou menos ao que é usualmente lecionado em um primeiro curso de pós-graduação em geometria Riemanniana (a teoria de superfícies de Gauss faz parte dos currículos de graduação). O texto básico correntemente em uso, e que contém também a moderna teoria de conexões criada nos anos 50, é o Foundations of Differential Geometry, em dois volumes, de S. Kobayashi e K. Nomizu (1963-9).
Um dos resultados mais importantes do pós-guerra é o teorema da esfera que foi demonstrado através dos sucessivos esforços de H. Rauch, M. Berger, V. Toponogov e W. Klingenberg entre 1951 e 1961. Aqui, métodos de comparação, que comparam uma variedade Riemanniana dada com uma variedade Riemanniana de curvatura constante em termos de alguns invariantes geométricos, foram desenvolvidos. Desde então esses métodos têm conduzido a outros teoremas profundos relacionados com a seguinte pergunta: como é o espaço formado por todas aquelas variedades Riemannianas que estão sujeitas à limitação de determinados elementos geométricos (como curvatura, diâmetro, volume etc.)? As idéias de Mikhail Gromov, considerado por muitos o maior geômetra em atividade (suas idéias ultrapassam as fronteiras da geometria e chegam a ter alcance em outras áreas de matemática, como teoria dos grupos e análise funcional), têm sido uma das principais fontes promotoras de desenvolvimento recente em geometria Riemanniana e têm inspirado um sem-número de excelentes jovens geômetras.

Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo, Rua do Matão, 1010, São Paulo, SP 05508-090, E-mail: gorodski@ime.usp.br

fonte(google)



[1] O nome geometria é de origem grega e significa literalmente “medição da Terra”.
[2] Método que atribui a cada ponto do espaço tridimensional uma tripla de coordenadas (x,y,z) em relação a três eixos ortogonais e permite relacionar a geometria com a álgebra.
[3] Isto quer dizer o limite da razão entre o ângulo Da entre as retas tangentes às extremidades de um arco e o comprimento Ds daquele arco quando ele se contrai a um ponto: k = . Essa curvatura é também o inverso do raio de curvatura no ponto em questão, i. e. o raio do círculo osculador à curva naquele ponto.  Aqui, o círculo osculador em um ponto P de uma curva é definido como sendo o limite dos círculos determinados por três pontos sobre a curva quando eles tendem a P.
[4] A torção em um ponto de uma curva mergulhada no espaço é uma medida numérica de quanto a curva se afasta de estar contida em um plano numa vizinhança daquele ponto; as curvas espaciais que estão contidas em um plano, ditas curvas planas, são caracterizadas por terem torção nula.  
[5] O clã dos Bernoulli foi para a matemática o que o dos Bach foi para a música, tendo produzido oito matemáticos em três gerações, sendo dois deles brilhantes: Jacob e Johannes.
[6] Essas são as curvas na superfície que são obtidas pela intersecção da superfície com um plano normal a ela. Uma bela apresentação desse assunto foi também elaborada pelo menos conhecido soldado francês Jean Baptiste Marie Meusnier (1754-1793).
[7] Essas fórmulas foram redescobertas independentemente por Jean Frenet (1816-1900) e Joseph Serret (1819-1885) que publicaram seus trabalhos respectivamente em 1847 e 1850.
[8] Esse é essencialmente o “triedro móvel” introduzido por Gaston Darboux (1842-1917) mais tarde em 1872, que substitui o sistema Cartesiano de eixos fixos por um sistema de eixos que acompanha a curva: em cada ponto P da curva considerada, o triedro tem origem em P, o seu primeiro eixo é tangente à curva, o segundo eixo é a direção normal principal (definida de modo que os dois primeiros eixos geram o plano osculador à curva, que é o plano que mais se aproxima de conter a curva numa vizinhança do ponto) e o terceiro eixo é ortogonal aos dois primeiros. Essa idéia seria consideravelmente generalizada no século XX por Élie Cartan (1869-1951) e aplicada por ele (sob o nome de método do referencial móvel) de maneira muito frutífera ao estudo dos grupos de Lie e variedades diferenciáveis, conduzindo enfim, com Charles Ehresmann (1905-1979) à teoria moderna dos fibrados principais e conexões.
[9] Estas são as curvas na superfície com a propriedade que qualquer segmento suficientemente pequeno é o caminho mais curto entre os seus extremos.
[10] Esta é a aplicação que associa a cada ponto P da superfície o ponto P’ da esfera de raio um tal que o raio OP’ é paralelo à normal unitária à superfície em P.
[11] Trata-se de uma espécie de taxa de variação da normal unitária à superfície em P, ou equivalentemente uma medida de quanto a superfície se afasta de ser plana numa vizinhança de P (como a normal unitária a um plano é constante, a sua taxa de variação em qualquer ponto do plano é zero, e portanto a curvatura Gaussiana do plano é zero em qualquer ponto).
[12] A segunda forma fundamental de certa forma descreve a maneira pela qual a superfície se curva dentro do espaço ambiente.
[13] O grande Klein, durante os anos da Primeira Guerra Mundial, escreveu sobre Jacobi em seu Vorlesungen über die Entwicklungen der Mathematik in 19. Jahrhundert: “Ehe ich die Betrachtung  über Jacobi schliebe, möchte ich noch eine Tatsache erwähne, dir mir unter dem Gesichtspunkt der Charakteristik des Mannes als auch unter dem der Entwicklung unserer Wissenschaft nicht unwichtig erscheint. Bekanntlich hatte das Jahr 1812 die Emanzipation der Juden in Preuben gebracht. Jacobi ist der erste jüdische Mathematiker, der in Deutschland eine führende Stellung einnimmt. Auch hiermit steht er an der Spitze einer groben, für unsere Wissenschaft bedeutungsvollen Entwicklung. Es is mit dieser Mabnahme ein neues grobes Reservoir mathematischer Begabung für unser Land eröffnet, dessen Kräfte neben dem durch das französische Emigrantentum gewonnenen Zuschub sich in unserer Wissenschaft sehr bald fruchtbar erweisen. Es scheint mir durch solch’ eine Art Blutserneuerung eine starke Belebung der Wissenschaft gewonnen zu werden; neben dem schon berührten Gesetz der Wanderung der Produktivität von Land zu Land möchte ich das Hervorkommen dieser Erscheinung als Wirkung der nationalen ,,Infiltration” bezeichnen.” Aqui Klein menciona que Jacobi, graças à emancipação dos judeus na Prússia em 1812, pôde ser o primeiro matemático judeu a assumir uma posição de relevo na Alemanha, e comenta como o oferecimento de oportunidades às minorias é benéfico para o desenvolvimento da ciência no país. 

[14] Generalização da métrica Riemanniana.
[15] Tipo de geometria inventado por Poincaré que não se ocupa de propriedades métricas dos objetos mas apenas de suas propriedades invariantes por deformações contínuas. Em topologia, o ponto de vista global é freqüentemente substancialmente mais importante do que o local.

  

Nenhum comentário: